Em queda livre, de Márcia Maia
Pássaro embebido em vôo
por André Ricardo Aguiar
É preciso apurar o olhar para uma constatação exata sobre a poesia de Márcia Maia: entrega, mas através de uma observação sagaz do fazer poético. Dona de uma dicção límpida, sem se desviar para os experimentalismos ou sequer o derramamento de matéria lírica, Márcia antevê um projeto de linguagem em que o dizer e o fazer se equiparam. E para tanto elege seus mitos pessoais, tirando muito do espanto de suas leituras — atentas, comprometidas — e de sua vivência. Vem daí que os seus versos de circunstâncias adquirem aquela rara sensação de eterno. Ou quando trabalha seus demônios particulares, seja a solidão, o amor, o tempo e a morte.
De tudo fica um resíduo da natureza. Em todos os sintomas que acometeram os mais variados poetas, essa equivalência do mundo natural na poesia criou quase um esperado espelho, muito caro, muito recorrente. Márcia Maia não se faz de rogada e toma para si essa mirada nas coisas para recuperar, via linguagem, o olhar inaugural sob sua ótica — porque tem na lição eliotiana um ponto a favor: dialogar com a tradição é muitas vezes um meio de promover o novo.
A começar pela simplicidade: técnica a serviço do simples, de limpar o poema das impurezas ou como a velha analogia entre poesia e fotografia. A poeta capta o instante através de uma lente especial. Testa a melhor luz, enquadra, revela. Sua poesia é uma lenta espionagem da vida, muitas vezes em zoom, sem esquecer algumas panorâmicas. Técnica do olhar, de todo o aparato humano que a arte soube traduzir, eis a fatura que um poema como “Roteiro Adaptado” nos mostra:
da janela
te espio a espiar-me
te espiar
ir e vir de olhares e
espelhos
(potência de lentes)
teia que nos ata.
A poesia de Márcia Maia comporta círculos. Há como que uma volta, um retorno, o seguimento de um caminho que elabora a mesma constatação da impossibilidade do poema perfeito — e ainda assim, produz instantes, ensaios de incomparável densidade:
à beira da estrada
um cemitériocruzes enfeitadas com
coroas de primeira-comunhãoinocência estendida entre
as lápidesnum misto de saudade e
decomposição
O discurso poético sinaliza para um ritmo próprio, de observação sem alardes, sem pirotecnias. O verso é música de câmera, lembrando-nos mais um quarteto de cordas do que grandes sinfonias. Estamos no terreno da miniatura, dos pequenos gestos, dos meios tons — não por acaso, azul é uma das obsessões cromáticas dessa poesia onde Carlos Pena Filho também passeia como referência:
e adormeço entre as flores
perfumadas
azuis e desbotadas do lençol
ou:
do outono inexistente e azul
ou nas notas falsas de um blues
Em suma, no tempo em que a poesia assumiu certa frugalidade disfarçada em moderno, Márcia Maia ainda inspira aquela combinação muitas vezes difícil entre ousadia e verdade, ritmo e elegância, resgate e mergulho.
Em queda livre, de Márcia Maia
Editora Bagaço, Recife
Formato: 103 páginas
Preço: R$ 20,00
ISBN: 85-7409-994-5
Onde comprar:
Com a autora
marciamaia@uol.com.br
Na editora
http://www.bagaco.com.br